terça-feira, 4 de setembro de 2007

Memórias de Corumbiara

Texto sobre as vítimas de Corumbiara conforme publicado no jornal "O Imparcial", de Presidente Prudente:

"Ana Paula Gomes tinha 5 anos no dia do massacre de Corumbiara, em Rondônia. Quando os policiais e jagunços entraram no barraco onde estava assentada, sua mãe estava por cima dela e do irmão Marcos, para tentar protegê-la – oficialmente, 16 pessoas morreram naquele dia, na Fazenda Santa Elina. Mas o jagunço mandou Maria das Graças Gomes levantar e lhe deu uma paulada. Ao apanhar a faca, um policial disse que não era para matar. As crianças começaram a chorar.

Doze anos depois, Maria das Graças contou a Ana que iria para Brasília, acampar na Esplanada dos Ministérios para pedir indenização por aquela sessão de tortura – o marido, Geraldo Gomes do Nascimento, teve o braço cortado (mas não amputado) por uma moto-serra. Ana Paula, a única entre os quatro que trabalha na família, acumulando os estudos com as atividades de empregada doméstica, virou-se para a mãe como se estivesse em agosto de 1995: “Mãe, não vai. Vai ter conflito”.

Não houve. Os sem-terra ficaram 20 dias em frente do Congresso, ao lado do Ministério da Justiça, para serem recebidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para cobrar a promessa feita dias depois do massacre, a de que quando chegasse ao poder daria terra e indenização a todos. Não foram recebidos por Lula, mas, cansados diante do sol e da baixa umidade de Brasília, contentaram-se com compromissos firmados – seis ao todo – na semana passada por seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho.

Deixaram ali histórias de um trauma. Os sem-terra revivem diariamente as cenas das agressões e execuções sumárias – que na época despertaram comentários indignados do próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Geraldo, o pai de Ana, foi um dos que acudiram a menina Vanessa, de 7 anos. Ela levou um tiro nas costas e morreu. Uma das versões dá conta de que ela teria se recusado a pisar no corpo dos companheiros.

Hoje, Vanessa Santos dá nome a um assentamento na região. Diante da reação na época, nacional e internacional, 600 famílias foram assentadas. Os principais são o Vanessa e o Santa Catarina. José Carlos Gonçalves dos Santos, hoje com 28 anos, mora no Santa Catarina. Tinha 15 anos, mas foi torturado junto com os adultos. “Vocês queriam terra?”, perguntavam os policiais. “Então agora tomem terra!” Ele foi obrigado a carregar um senhor que levara um tiro no pé. Não conseguiu. Apanhou. Aí levaram o colega numa rede. Chegando à cidade, todos apanharam novamente.

Tortura diária Uma das histórias mais contadas pelos sem-terra é a dos dois homens que foram obrigados a comer os miolos do cérebro de dois companheiros assassinados. Eram o Natalino e o José Birrinho – apelido herdado de um jogo de sinuca. Hoje José Birrinho é citado por eles como o “José Miolo”. Eles contam de várias pessoas que desatinaram. Fora as que desapareceram. Pelos relatos dos sobreviventes, muito mais gente sumiu ou morreu. Mas eles não sabem quantos. Dizem que, entre as milhares de pessoas presentes no dia da reintegração de posse, muitas fugiram para nunca mais voltar.

Naquele 09 de agosto, os sem-terra foram obrigados a ficar deitados durante horas na Fazenda Santa Elina, desde o início da manhã até as cinco da tarde. Eram pisados, e alguns, sumariamente executados. “Pegavam os próprios cabos de foice para bater na gente”, conta Claudinei Silva Ribeiro, de 31 anos. Ele teve a clavícula quebrada por uma cacetada – não pode mais pegar peso, trabalha como motorista. Sentado na Praça dos Três Poderes, diante do Palácio Alvorada, ele tentou reproduzir a posição em que tiveram de ficar. Não conseguiu: chorou durante vários minutos.

O pedido de indenização percorre os relatos de todos os entrevistados. “Até hoje não posso caminhar direito, por causa dos pontapés na cabeça”, afirma Alfredo Francisco do Nascimento, de 62 anos. Até um coice ele levou. Foi proibido pelos médicos de trabalhar, mas não recebe aposentadoria. Vilmar Alves da Silva, de 51 anos, ficou com um peito “levantado”, após os golpes nas costas. Ele foi um dos que falaram com Lula, no hospital. O então presidente de honra do PT prometeu que, quando fosse presidente, a Fazenda Santa Elina nunca mais ficaria com um fazendeiro.

João de Melo Sobrinho, de 62 anos, viu o filho Vilmar, hoje com 33 anos, ficar louco após ser torturado, com o fio de moto-serra amarrado no pescoço. “Era um rapaz caprichoso, fazia tudo bem certinho. Desse ponto em diante, tudo dá problema nele, qualquer coisa que põe na mão dele ele solta, para arrebentar”. É uma imagem que sintetiza a impaciência dos sem-terra de Corumbiara, sem indenização doze anos depois: é como se algo entre eles estivesse sempre para arrebentar novamente: os ossos, uma explosão de choro, o desespero. A memória, essa resiste.

“Tem hora que a cabeça da gente está tão torturada”, diz Rosimeire Gatti, de 30 anos, uma das que estenderam faixas em frente do Palácio do Planalto. Aos 17 anos ela serviu de escudo humano para os policiais, viu um companheiro ter a cabeça aberta com uma moto-serra e dois colegas serem mortos. “É um sentimento tão grande do que a gente viu, os companheiros sendo mortos na nossa frente, mulheres grávidas sendo espancadas... Vieram policiais pedir para a gente tirar as faixas. Eu disse que só se tivesse outro massacre”."

Um comentário:

Anônimo disse...

De pensar que isso aconteceu depois da Ditadura!