sexta-feira, 20 de julho de 2007

Os olhos do Chico (4)


4) TOINHO PESCADOR

Aos 75 anos, Toinho Pescador fala do Velho Chico com lágrimas.

Ele começou a pescar com 12 anos. Primeiro, mandi, piau, piranha. Depois, muito surubim, pirá, tubarana. “Nessa época o rio não tinha barragem, e tinha muito peixe, camarão, pitu, em grande quantidade. Pescador profissional pegava 30, 50 quilos por dia. O maior peixe que peguei foi 45, 50 quilos. O último deu 32 quilos e meio, em 1994. O último surubim está com 12 anos. Tristeza”.

Suas histórias de pescador ganharam contornos trágicos na medida em que foram sendo construídas as barragens – Paulo Afonso, Itaparica, Xingó. “Ficamos 12 anos sem cheia. E hoje é uma cheia improdutiva, porque vem com água morta.”

Antonio Gomes dos Santos é vice-presidente da Federação dos Pescadores de Alagoas e titular do Comitê Hidrográfico da Bacia do Rio São Francisco. É de Penedo. Fundou o movimento “Filhos do Velho Chico”. “A gente luta em defesa do rio, reivindica, pesquisa, denuncia”. E arrisca seus poemas, como o longo “São Francisco, nosso pai”:

“Há 30 anos atrás/ O nosso rio era assim/ passarinhos cantavam alegres/ não tinha veneno aqui/ Também não tinha barragem/ Era bom viver assim”

Segundo Toinho, a maioria das espécies de peixe desapareceu. “Surubim, mandim, corvina, pira são peixes de piracema – e não tem mais piracema” Os animais foram indo embora na medida em que se multiplicaram as plantações de cana-de-açúcar – e as queimadas.

“Era lindo se apreciar/ Cupim, formiga, grilos e ratos/ Nas águas começava a boiar/ Tornando-se alimentos/ Para os peixes engordar/ Quem ganhava era a população/ Tanto dos peixes e das aves/ Como de nós cidadãos”.

Ele teve nove filhos e adotou mais dois. “Todos foram criados à custa de pescaria do São Francisco. Hoje meu filho tem uma menina e com a renda da pescaria não tem condição de criá-la, pede nossa ajuda”.

“Hoje a coisa já mudou/ Do melhor para o ruim/ Quem são os culpados disso? Já deu para refletir/ Quando, por causa do medo/ Deixaram acontecer assim/ Fecharam quase todas as várzeas/ Barragem foi por demais/ Acabou-se a produção de peixes/ Já se foram os animais”.

O pescador, que estudou até o quarto ano primário, defende um estudo sobre as barragens. Conta que nunca um pescador foi indenizado por conta dos prejuízos causados ao seu trabalho. “Mas não queremos indenização, queremos que o rio se recupere, que volte a ter peixe de piracema”.

Toinho conta que as lagoas que se formavam tinham tanto peixe que as mulheres pescavam com o pé. “Levavam para fazer com o arroz. Ou comiam marreco. Hoje não tem mais isso. Não tem mais nem lugar para plantar.”

“Acabou-se a produção de peixes/ Já se foram os animais/ Agrotóxico mata os passarinho/ Saúde não existe mais/ E o rio? Que era rico/ Hoje está para morrer/ Clamando pelo nosso amor/ Pedindo para viver”.

Mas ele não desiste. “Nossa luta é essa”, diz, erguendo os olhos marejados. “Não vamos nos entregar”.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Os olhos do Chico (3)


3) O ÍNDIO

Iapirá tem o olhar duro. É um índio kiriri, que foi parar no Rio São Francisco exatamente em busca de água. São 32 famílias, cerca de 130 pessoas. Antes moravam a 200 quilômetros de Paulo Afonso (BA). “Como a gente sentiu dificuldade de trabalho, arrumar o pão de cada dia, teve de sair para um lugar melhor, para sobreviver, ter um ponto com menos sofrimentos para dar de comer à família”.

Ele tem veia poética, cara à tradição indígena. Para falar do rio, compara a água ao nosso sangue. “Se cortar uma veia nossa e deixar aquela veinha ir esgotando, uma gotinha por hora, uma hora vamos morrer. A mesma coisa é o rio. Tem gente perguntando para quê tanta água ir para o mar, que é uma água perdida. Mas a gente tem conhecimento de que assim o rio vai morrer”.

Seu nome no registro de nossa civilização é Carlos Cristóvão Batista. Ele tem um convite a cada um que queira entender melhor o que acontece no Velho Chico: atravessá-lo.

“Não de avião, não de helicóptero, não de barco a motor”, explica. “De barco a remo. Venha de Aracaju até a Serra da Canastra, para ver se passa. Não passa. Hoje ele está cheio, porque Deus mandou a Divina Misericórdia para ele encher e compor suas obras de natureza. Mas tem tempo que você atravessa pisando na areia do fundo do rio. Esta é a verdadeira história, e como é que dizem que tem água sobrando?”

Iapirá fala com dor. Diz que as comunidades indígenas sentem no próprio corpo as agressões ambientais. “A gente sente como se tivesse sendo massacrado pelo governo, como estamos. Se ele está tirando a vida do rio, não está tirando a vida do rio, e sim a vida de vários seres humanos. A gente fala com segurança e com tanta dor que o próprio governo está matando o povo dele, e com as próprias mãos”.

Iapirá fala também com raiva. É seu cotidiano de plantio e pesca que julga ameaçado. E essa raiva é histórica – sem a lógica da diplomacia cara-pálida. “Não é só o fazendeiro que massacra o rio, mas também o povo da cidade, que faz um canal de esgoto para jogar toda a sujeira dentro do rio”. Ele cita o exemplo dos animais mortos nas fazendas, que em vez de serem enterrados ou queimados vão parar no Velho Chico – afetando quem usa a água mais abaixo “para beber, para lavar, para cozinhar”.

E fala também da raiva. “Se viesse um elemento lá de fora, entrasse dentro de sua casa, e cortasse um braço de sua mãe, de seu pai, ia ficar satisfeito?”, pergunta – com a voz mais aguda, emocionado. “A mesma coisa é estarem exterminando e cortando o rio. Para matar, para morrer o rio, essas são as intenções desse povo branco, que aí está com essa ganância, esse orgulho, esse poder econômico. Por isso que falo com raiva, porque está matando o pai e a mãe desse povo que mora na beira do rio.”


quarta-feira, 18 de julho de 2007

Os olhos do Chico (2)


2) A PARTEIRA

O olhar dela é cheio de vida. Realizou nada menos que 5 mil partos, na região da Serra da Guia, no Sergipe. “Casei com 12 anos e três meses. Os meus são oito, mas criei 18 filhos dos outros. As mães não querem criar, queriam remédio para matar. Nunca aceitei essas coisas, aí crio. Hoje só tenho um solteiro em casa. Netos, tenho 36”.

A comunidade quilombola de Josefa Maria da Silva, a Josefa da Guia, fica no município de Poço Redondo, a alguns quilômetros do rio. Ela chegou a ser homenageada pela Assembléia sergipana. Ficou feliz. “Faço partos desde os 11 anos”, conta. “No primeiro a mãe estava bêbada. Fiz tudo e depois acostumei, com muita vontade. Minha mãe era parteira de muitos anos, minha avó também. Peguei uma herança.”

Por motivos de saúde, os membros da comunidade tomam água levada com caminhão-pipa. “A gente quer consumir a água, um rio de qualidade, sem sujeira”, reclama.

A mãe de Zefa da Guia contava que no “fim das eras” todos iam beber água de cacimba. Que não ia ter água para usar. “Os mais velhos já diziam, por palavras do padre Ciço, dos patriarcas, dos conselheiros. Não era uma adivinhação. E eu acho que está acontecendo. Ela dizia: no fim das eras a gente vai ter pouca influência sobre o rio, a lavoura e as florestas iam ser destruídas, tudo ia se acabar. Ela morreu com 98 anos”.

Líder da comunidade, ela comanda as rezas na Serra da Guia. Tem 2.708 afilhados, só na Igreja. “Todas as noites tô arreunino o pessoal e vamos rezar. Pedir à Santíssima Maria e ao pai que está no céu – e construir um mundo de alegria e felicidade”.

Zefa não gosta de comer peixe nem nadar. Enquanto fala, mostra a água batendo na canela: seus limites. “O rio acho ele muito bom. Dá muita renda para quem mora perto – para sobreviver as famílias. Quero muito que o povo pesque. Se veve só de carvão, de pedra, como vai viver?”

Os sogros foram escravos. Onde mora tem um Cemitério dos Escravos, com mais de 1.500 corpos. “Quando escravos, plantavam mandioca, usavam palmito, batata-do-mato, frutas do mato, xique-xique, para sobreviver os filhos. Quando fugiram, não tinham nada”.

Do desejo de liberdade ela herdou aversão aos fazendeiros. Ela os chama de “tubarão”. “Tem tanta gente que quer ser rico e não é... rico, só Deus. Esses tubarão se julgam de qualidade. Demora demais para a gente ter terra para trabalhar. Se eu sou peixinho? Não, eu sou peixão.”

Ela diz não ter revolta ou mágoa. Mas depende das cestas básicas entregues pelo governo. “Os home têm que fazer chegar. O governo é que vai chegar, abaixo de Deus.” Além de ser parteira, ela cozinha. Costuma fazer pirão de capoeira. “O que botarem eu faço tudo”.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Os olhos do Chico (1)



Escrevi para os diários da APJ quatro perfis de moradores da região do Rio São Francisco. Seus olhares, suas histórias. Confira:

1) O AMBIENTALISTA

O olhar dele é de esperança. Quando era criança, em Igreja Nova (AL), o rio desafiava os 40 quilômetros de distância e chegava até a porta de sua casa, na cheia. “Nadava e pescava no meu quintal”, conta Antônio Jackson Borges Lima, pequeno produtor rural e ambientalista. “Aprendi a nadar num pedaço de mulunga, uma madeira leve, tipo isopor”. A água chegava a 3 metros de profundidade. Algumas crianças morriam, e ele no início tinha de ficar preso em casa, entre outubro e março, para não morrer afogado.


As preocupações mudaram. Antes de falarem em transposição, Lima já se preocupava com o assoreamento. Hoje ele mora em Traipu, na margem alagoana do rio, onde coordena o primeiro e único museu sobre o Velho Chico. Ali ele coleciona objetos que contam a história dos moradores da região – como um moedor de café da Serra da Canastra, um liquidificador à corda, uma máquina de lavar de madeira. E registra a história da navegação no rio, das canoas aos vapores.


No Museu Ambiental Casa do Velho Chico as crianças aprendem a respeitar o mais Velho. Informam-se sobre queimadas, esgotos, garimpagem, agrotóxicos, irrigação. No sítio de 20 tarefas (ou 6 hectares), Lima planta árvores – somente pau-brasil, são dez. É um esforço de preservação da história, mas também de renovação. “Temos 504 municípios na região, todos jogando esgoto no rio”, diz o ambientalista.

O amor pelo rio nasceu da água no quintal e foi consolidado durante toda sua vida profissional. “Tive 32 férias, todas navegando no Baixo São Francisco”, conta Lima, um fiel apaixonado. Ele era funcionário do Banco do Nordeste e trabalhou em várias agências na beira do rio: em Pão de Açúcar e Penedo (AL), Gararu, Neópolis e Ilha das Flores (SE).

“Casei com moça de Traipu, tinha esse sitiozinho na beira do rio, aí construí o museu.” Museu e biblioteca. “Idéia é construir um auditório, para 50 pessoas, um barco-escola e um caminhão-baú, um caminhão itinerante”.

Durante as férias o ambientalista viu duas coisas: pobreza e ausência de projetos. Cita o caso de um assentamento na beira do rio, em Traipu, com 120 famílias. “Eles têm todas as condições: água, energia, gente, terra”, enumera. “Mas falta projeto, apoio técnico e financeiro. Alagoas praticamente não tem projeto na minha margem do rio”.

Ele lembra que, antes da barragem de Sobradinho, o São Francisco produzia muito arroz e peixe. Agora, a expectativa é a de uma grande cheia em 2009. A maior que ele viu foi em 1979, e a cada 20 anos tem uma. “Se o efeito estufa não interferir”, diz.

A fala de Lima alterna melancolia à necessidade de resistência. “As espécies de peixe desapareceram. Tem jovem de 19 anos que não conhece o surubim. A tubarana (dourado) está em processo de extinção”, observa. “Lá no museu tem três meses que um pescador conseguiu uma tubarana de 16 quilos. Está lá, embalsamada, para as pessoas conhecerem”.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Crianças: prioridade orçamentária?

A Andi promoveu ontem a cerimônia de titulação dos 20 novos Jornalistas Amigos da Criança. Estou muito feliz por estar entre os escolhidos. Há quem tenha batalhado duro para ganhar essa homenagem. Segue a reportagem publicada no site da Agência Repórter Social:

"Representantes de duas organizações preocupadas com a cobertura jornalística dos temas infância e adolescência cobraram nesta quinta-feira em Brasília mais atenção às questões orçamentárias. A preocupação apareceu tanto na fala do representante adjunto do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Manuel Rojas Buvinich, como na de Âmbar de Barros, conselheira e uma das fundadoras da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi).

A cerimônia premiou mais 20 Jornalistas Amigos da Criança, escolhidos pela Andi em 13 Estados brasileiros. No total, são agora 346 jornalistas premiados desde 1997, por seu comprometimento com os temas da área social, em especial aqueles relacionados à infância e adolescência.

“Um dos desafios aos Jornalistas Amigos da Criança é acompanhar o orçamento”, afirmou Buvinich. Ele disse que deve se chegar a uma cultura de acompanhamento orçamentário que questione os resultados das políticas públicas para a área da infância. “E a partir daí exigir dos políticos”, adicionou.

Buvinich também reivindicou dos jornalistas mais acompanhamento do desenrolar das denúncias. Citou o exemplo de casos de exploração sexual infanto-juvenil para observar que, muitas vezes, as reportagens são feitas de modo muito solto. “Denunciamos a situação de violação de direitos, vêm as declarações, mas não há continuidade”, afirmou. “Se houve violação, qual a política, qual sua sustentabilidade, qual o impacto?”

Âmbar de Barros, que começa nesta segunda-feira a trabalhar na TV Cultura, em São Paulo, criticou a atual formação dos jovens jornalistas para ressaltar a responsabilidade formativa dos Jornalistas Amigos da Criança, em suas redações. Ela concordou com as proposições de Buvinich. “O político prometeu, o projeto foi aprovado, quanto custou isso? E é preciso acompanhar o orçamento executado, nossos orçamentos muitas vezes são fictícios, botam lá o investimento e não liberam os recursos”.

Para auxiliar os profissionais nessa cobertura orçamentária, o evento teve uma oficina com Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas, com dicas de pautas a partir dos dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi).

Jacqueline Lopes, repórter do jornal O Estado do Mato Grosso do Sul, fez o discurso mais emocionado entre os 20 jornalistas premiados. Ela chorou ao lembrar que seus avós foram vítimas de trabalho infantil, e que sua família lutou para que não seguisse o mesmo caminho.

A fala de Edisvânio Nascimento tocou numa ferida do governo federal. Radialista comunitário da Santa Luz FM, na região sisaleira da Bahia, ele contou que tenta há nove anos obter a autorização para a rádio, voltada para os direitos das crianças e dos adolescentes na região – conhecido pólo de trabalho infantil. Ele já foi processado e um de seus colegas chegou a ser condenado por conta da rádio comunitária".