quarta-feira, 18 de julho de 2007

Os olhos do Chico (2)


2) A PARTEIRA

O olhar dela é cheio de vida. Realizou nada menos que 5 mil partos, na região da Serra da Guia, no Sergipe. “Casei com 12 anos e três meses. Os meus são oito, mas criei 18 filhos dos outros. As mães não querem criar, queriam remédio para matar. Nunca aceitei essas coisas, aí crio. Hoje só tenho um solteiro em casa. Netos, tenho 36”.

A comunidade quilombola de Josefa Maria da Silva, a Josefa da Guia, fica no município de Poço Redondo, a alguns quilômetros do rio. Ela chegou a ser homenageada pela Assembléia sergipana. Ficou feliz. “Faço partos desde os 11 anos”, conta. “No primeiro a mãe estava bêbada. Fiz tudo e depois acostumei, com muita vontade. Minha mãe era parteira de muitos anos, minha avó também. Peguei uma herança.”

Por motivos de saúde, os membros da comunidade tomam água levada com caminhão-pipa. “A gente quer consumir a água, um rio de qualidade, sem sujeira”, reclama.

A mãe de Zefa da Guia contava que no “fim das eras” todos iam beber água de cacimba. Que não ia ter água para usar. “Os mais velhos já diziam, por palavras do padre Ciço, dos patriarcas, dos conselheiros. Não era uma adivinhação. E eu acho que está acontecendo. Ela dizia: no fim das eras a gente vai ter pouca influência sobre o rio, a lavoura e as florestas iam ser destruídas, tudo ia se acabar. Ela morreu com 98 anos”.

Líder da comunidade, ela comanda as rezas na Serra da Guia. Tem 2.708 afilhados, só na Igreja. “Todas as noites tô arreunino o pessoal e vamos rezar. Pedir à Santíssima Maria e ao pai que está no céu – e construir um mundo de alegria e felicidade”.

Zefa não gosta de comer peixe nem nadar. Enquanto fala, mostra a água batendo na canela: seus limites. “O rio acho ele muito bom. Dá muita renda para quem mora perto – para sobreviver as famílias. Quero muito que o povo pesque. Se veve só de carvão, de pedra, como vai viver?”

Os sogros foram escravos. Onde mora tem um Cemitério dos Escravos, com mais de 1.500 corpos. “Quando escravos, plantavam mandioca, usavam palmito, batata-do-mato, frutas do mato, xique-xique, para sobreviver os filhos. Quando fugiram, não tinham nada”.

Do desejo de liberdade ela herdou aversão aos fazendeiros. Ela os chama de “tubarão”. “Tem tanta gente que quer ser rico e não é... rico, só Deus. Esses tubarão se julgam de qualidade. Demora demais para a gente ter terra para trabalhar. Se eu sou peixinho? Não, eu sou peixão.”

Ela diz não ter revolta ou mágoa. Mas depende das cestas básicas entregues pelo governo. “Os home têm que fazer chegar. O governo é que vai chegar, abaixo de Deus.” Além de ser parteira, ela cozinha. Costuma fazer pirão de capoeira. “O que botarem eu faço tudo”.

Um comentário:

Anônimo disse...

As histórias dessas pessoas que vivem com tão pouco me fazem pensar que nós arrumamos "necessidades" desnecessárias... Essa senhora é uma heroína!